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Vozes da Segurança - Histórias Reais

“Foi a primeira vez que vi meu pai chorar”

05/12/2023

Douglas da Guarda conta sua emocionante história de dor e resiliência e nos mostra a tênue linha entre a superação e o fracasso de quem sofre um acidente de trabalho.

Em 1992 eu tinha 14 anos, éramos uma família de seis pessoas e morávamos em Divinópolis – MG. Desde cedo eu já precisava trabalhar para ajudar nas despesas de casa e, naquela época, a lei não impedia o trabalho infantil. Minha história de dor e superação começa aqui.

Acordava antes do sol nascer e começava a trabalhar às 5h em uma fábrica de papel. Naquele fatídico dia, me pediram que trocasse de máquina por apenas duas horas, até um funcionário assumir. Eu não conhecia a tal máquina, nunca tinha usado e nem sido treinado para manipulá-la, mas irresponsavelmente fui designado para colocar a ponta de um papel entre cilindros para colar uma lâmina lisa a outra micro ondulada. E foi na primeira hora de trabalho que o papel encharcou de cola, arrebentou e puxou a minha mão direita. A máquina começou a engolir e moer minha mão, como se fosse cana-de-açúcar, meu reloginho Cassio foi empurrado para o cotovelo, apertando meu antebraço. Com isso, eu não conseguia sair ou desligar. Levei minha mão esquerda na tentativa de puxar a outra, mas desisti tão logo imaginei que as duas poderiam ficar presas. 

Como a máquina não tinha um dispositivo de segurança, gritei por ajuda e um amigo que trabalhava próximo correu para desligar o equipamento. Os mecânicos vieram desaparafusar os rolos e finalmente minha mão se liberou. Ela estava totalmente esmagada, ferida. Pedi ao amigo que retirasse o relógio que me apertava, mas quando viu minha mão, ele desmaiou. Consegui desabotoá-lo e fui levado ao hospital.

Fiquei internado por alguns dias enquanto os médicos tentavam recuperar minha mão, mas a falta de fluxo sanguíneo matou os tecidos e minha mão direita gangrenou. O médico pediu que minha família fosse contatada com urgência. Minha mãe perdeu as forças e não conseguiu ir para o hospital, mas meu pai e meu irmão mais velho estavam lá. Percebi que meu irmão me observava de longe para que eu não o visse chorar. Meu pai tinha retornado da conversa com o médico e assinou um termo autorizando que minha mão fosse amputada. Ele se aproximou de mim e eu estendi minha mão esquerda para pedir sua benção. Essa foi a primeira vez que vi o meu pai chorar.

Minha mão estava pendurada em uma corrente amarrada ao teto para que uma secreção escorresse dela. Ela seria amputada. Não pensava em nada disso, só queria me livrar daquela dor latejante, ferroando meus ossos. Mas minha família sabia que no dia seguinte eu iria para cirurgia e sairia de lá uma pessoa deficiente, um menino de apenas 14 anos. Eu sei o tamanho do sofrimento que minha família viveu por me ver naquela situação.

E a partir do dia seguinte, minha vida mudou e eu me tornei um menino vazio, triste, sem confiança e com depressão. Eu me escondia sempre que podia, quando minha mãe me pedia para ir ao mercadinho próximo eu dizia a ela para pedir ao meu irmão, não queria as pessoas comentando, apontando para mim e dizendo “olha lá o Douglas, filho da Dita e do Seu Angelo, sem a mão”. E fui me tornando cada vez mais um menino amuado.

Uma festinha de criança poderia ter sido a minha última e eu não estaria aqui contando minha história. Hoje consigo falar desse momento sem me machucar, pois a maturidade e o tempo me ensinaram a lidar com as marcas daquele acidente de trabalho. Fui ao aniversário de 15 anos de uma amiga, no Salão Comunitário do bairro de Santa Tereza, em Divinópolis. Eu ainda não estava bem com a minha situação, mantinha o toquinho escondido no bolso da calça. No decorrer da festa, passei a trocar olhares com uma menina sentada longe, paquera de adolescente, de repente a aniversariante chegou e disse “uma amiga quer te conhecer”. Meu coração disparou, não por conhecê-la, mas pelo medo de que ela visse como sou.

Escondi meu toquinho no bolso e quando cheguei perto dela levei a mão esquerda para pegar na mão dela e dar os três beijinhos, ela fez que não com a cabeça e pediu a outra. Meu sangue gelou, tirei o toquinho do seu esconderijo e estiquei para ela. O encanto acabou, saiu apressada para ir ao banheiro e nunca mais voltou. A aniversariante tentou me consolar, eu fingi estar bem, disse que ia tomar um refrigerante e comer um salgado, mas a sensação de ser rejeitado me destruiu, eu saí da festa discretamente e fui embora para casa chorando e decidido a dar fim a minha vida.

Naquela noite tão triste, minha mãe me salvou. Ciência nenhuma no mundo explica o coração de uma mãe. Ela entrou no meu quarto, sentou-se na cabeceira da minha cama e enquanto passava a mão na minha cabeça, rezava pedindo a Deus pelo filho que tinha perdido a mão, que Ele não permitisse que seu filhinho sofresse. Foi a minha mãe que me salvou.

Não quero que ninguém passe pelo que eu passei, nem pelo que minha família passou. Por isso, hoje eu uso a minha história, minha experiência como vítima de acidente, para sensibilizar e tocar os corações dos trabalhadores e empregadores, para que a segurança do trabalho seja de fato um valor, convictos de que o comportamento seguro é a base para qualquer bom programa de saúde e segurança.

Anos depois do acidente, enquanto trabalhava em uma multinacional da Indústria Siderúrgica, um palestrante da SIPAT – Semana Interna de Prevenção de Acidentes, perdeu o voo e não conseguiu se apresentar. O Engenheiro de Segurança, sabendo do acidente pelo qual eu havia passado, me convidou para dar meu depoimento. Mesmo tímido e nervoso, contei minha experiência e aprendizados e recebi o retorno de que aquela tinha sido a melhor palestra na área. Naquele ano, o interesse por SST despertou dentro de mim, o que me levou a fazer um curso no SENAI na área e criar um projeto para sensibilizar pessoas. A oportunidade passou na minha frente e eu a abracei. Hoje, aos 45 anos, sou casado com a Cristiane de Paula, pai do Davi Rafael de oito anos e da Maria Flor de dois, com formação em Técnico de Saúde e Segurança do Trabalho, estudante de Psicologia e palestrante motivacional para comportamento seguro. Viajo o Brasil inteiro falando sobre comportamento seguro, justamente para que nenhuma família passe pelo que passamos.

Da esquerda para direita: Davi Rafael, Maria Flor, Douglas e Cristiane de Paula.

Eu mudei a minha história, mas a maioria dos acidentes de trabalho destrói sonhos que nunca mais serão reconstruídos. Eu sempre quis fazer um sinalzinho de coração com as mãos, eu sei que vou morrer sem fazê-lo e alguém pode pensar que é algo bobo, mas para mim é muito significativo. No meu casamento, queria tocar violão para minha esposa e não pude. Também pensei que esse sonho eu perderia com a minha mão, mas hoje, ao final das minhas palestras, toco violão com um adaptador de PVC que criei para encaixar no toquinho, também sou aprendiz de saxofone, aluno de um professor que me olhou além da deficiência e meu deu a oportunidade de tentar.

O acidente de trabalho tem impactos emocionais, psicológicos e sociais que muitas vezes nos arruína para sempre. A maturidade me fez aceitar minha deficiência, mas esse é um processo doloroso. O acidente nos leva para o INSS, com salário menor, gastos maiores, estruturas financeira e psicológica abaladas; para o alcoolismo, drogas, depressão e suicídio é um pulo. O mundo lá fora é preconceituoso, o deficiente tem que provar sua capacidade a todo momento e nem sempre encontrará oportunidades.

Por tudo isso, ao final das minhas palavras eu gosto de firmar um compromisso para que todos sejam multiplicadores de saúde e segurança no ambiente de trabalho. 

“A gente se conecta: o acidente fica longe. Multiplicadores: de segurança!” ♥


Vozes da Segurança – Histórias Reais é uma campanha de conscientização criada pela ERPLAN com o objetivo de Preservação da Vida. Nosso intuito é compartilhar experiências e ajudar a sociedade a tomar consciência das consequências de um acidente de trabalho para que, juntos, possamos pensar em maneiras eficientes de praticar a prevenção.

Se você tem ou conhece alguém que tenha alguma história ligada, direta ou indiretamente, à acidente de trabalho, envie um email [email protected] que nosso time entrará em contato com você.

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